De abrir mão ela entendia bem. Pois desde cedo começara por praticar tal ato.
Começou abrindo mão de coisas pequenas, pequenos prazeres, pois é mais fácil se desfazer e desistir de projetos ainda não começados, ou bem pequenos, do que projetos grandes, que já tomaram vida e praticamente caminham por si só, até porque quando planos realmente pequenos são abandonados ninguém vai lembrar mesmo no fim. Nem mesmo quem os planejou, até porque, se desistiu de tal projeto é porque ele não tinha nenhuma importância.
Começou pensando assim, e abriu mão de mais coisa do que imaginava. Mas sempre ouvira sua mãe dizer que “Não adianta guardar coisa velha e sem utilidade” nesse caso nem era coisa velha, era coisa novinha, recém criada, mas no fim só ia dá num monte de entulho, então pra não investir no que não ia crescer, era melhor esquecer antes mesmo do começo. Dentro dela não havia um porão, nem mesmo uma gavetinha pequena com espaço destinado para sentimentos quebrados, inacabados ou ainda não projetados. Lá só cabia o que já era firme, e de coisas frágeis bastava-lhe o aspecto.
Depois de abrir mão das pequenas coisas sentiu-se mais leve.
Geralmente é uma sensação tão ilusória quando a de felicidade. É leve no começo, mas de tão leve evapora e depois não fica mais nada, sequer a lembrança de que existiu um dia.
Mas porque desistir agora que a primeira etapa já estava concluída?
Começou a se livrar então de coisas maiores, as mágoas foram as mais difíceis de desfazer, por menores que essas fossem. (Parênteses para uma confissão! A primeira de incontáveis: Para as mágoas houve espaço! Um espaço apertado e pequeno, para que elas ficassem bem guardadas e escondidas, assim ninguém se daria conta de que elas permaneceriam lá, e quando o espaço é realmente pouco dá pra arrumar, entre uma bagunça ou outra.) Sentiu-se orgulhosa, porque havia descoberto uma forma de manter algo guardado, embora sua escolha não tivesse sido a melhor dentre as suas possibilidades, havia descoberto uma forma de se manter viva e respirando em meio ao novo mundo que estava construindo.
Guardadas as mágoas, uma a uma num espaço apertado, foi-se desfazer de prazeres maiores. Abandonou momentos de lazer, TV, livros, e por aí vai uma lista bem grande e chata de descrever, e desnecessária. Pra quê citar tudo do que se desfez? Deve-se lembrar do que ficou, que na verdade não foi muito.
O que ganhou destaque dessa vez (a primeira das vezes, pois posição de destaque nunca havia sido um forte em sua vida) foi um espaço bem grande, limpo e vazio. Um vazio cortante, porque ele brilhava como pedacinhos de vidro moído de tão claro que se encontrava. No espaço vazio, o nada. O silêncio e as mágoas. Essas sim (as mágoas) depois de um tempo começaram a ocupar um espaço maior, pareciam se multiplicar! E com que velocidade! Bateu até certo arrependimento por não ter se livrado delas logo de cara, quando teve a primeira oportunidade de jogá-las fora. Mas agora já eram tantas que pareciam ter criado raízes. Tinha de tudo quanto é tamanho, densidade e cor. E tinha muito mofo. Parecia apodrecer tudo ao redor. E de fato, tudo estava ficando podre.
Por fim, abriu mão do direito à fala. Esse realmente deu bem mais trabalho, e tinha que ser monitorado vez ou outra, mas hoje definitivamente não se ouve mais. Ou melhor, só se ouve, não mais fala ou compartilha, absolutamente nada.
Depois de se esquecer chegou a hora de ser esquecida. Enquanto tal parte parecia ser a mais difícil, quando houve a tentativa de colocá-la em prática foi visível a ilusão presente em seus pensamentos. Tal parte foi a mais fácil.
Por dias parecia sequer ser notada. Era silêncio e silenciava, era invisível, ou ignorada, não sabia ao certo, mas sequer se importava.
O silêncio foi construindo um grande muro de concreto entre todo mundo que a cercava, ou era entre ela a separando de todos, ela não sabia também, porque pensar muito nas possibilidades era algo do qual já havia se desfeito a muito! Bastava seguir. Seguir a correnteza, porque remar era arriscado demais, e remar pra onde, quando não se tem direção?
No meio do silêncio, havia a ilusão do escuro, e no escuro geralmente lhe era permitido chorar.
Chorava assim, diariamente, um ritual que preferia praticar quando estava sozinha, porque se não havia interesse no que ela poderia falar, certamente não haveria interesse nenhum em possíveis dores, mágoas ou angústias. Chorava quietinha, e encolhia-se ao máximo em sua cama, ou no chuveiro enquanto tomava banho, e por acaso a água chegava até sua casa tinha muito cloro, então se caso fosse percebido seus olhos vermelhos, a culpa era do cloro e da empresa que distribuía água para a sua cidade!
À noite como o escuro tomava conta do seu quarto não era vergonhoso chorar, afinal, ela estava de fato invisível. O escuro no fim se dava por vencido e a consolava, abraçava-a e a colocava para dormir. O escuro e o silêncio, sempre lhe faziam companhia. (Segunda confissão: O silêncio, esse não era tão bom companheiro quanto o escuro, pois havia o medo de magoá-lo, o medo de quebrá-lo, e depois que se quebra alguma coisa dificilmente se concerta direito. Sabia disso porque quando pequena quebrara um vaso da sala da sua mãe, que depois tentou colá-lo, mas ficou pedacinhos de vidro mal encaixado e o vaso nunca mais voltou a ser como era no início. Então, por medo de quebrar o silêncio e não saber concertá-lo direito, ela se enroscava nos lençóis, os abraçava com força e apertava o máximo que conseguia contra a sua boca. Assim, som nenhum escapava. Era difícil, mas possível. O silêncio se mantinha, até adormecer).
Cheiro do dia: Sol derretendo.
P.S. - Gente envenena gente, gente sufoca, gente destrói...
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