O pior de tudo é quando o dia tá
frio, tenho que confessar. Quando amanhece nublado lá fora, amanhece nublado
aqui dentro também, em sincronia com o mundo, ao qual já me dei conta de que é
uma coisa só, mas isso vem depois. Agora, bem, agora eu estava falando do frio.
Na verdade, chego a me equivocar (o que pode até soar como uma mentira), mas ao
perceber o meu erro tento corrigi-lo de imediato. O que me ocorreu, de fato foi
que fiquei azeda e nublado bem antes do dia amanhecer assim, tão cinzento
quanto eu.
Já começo o dia com uma mentira,
uma mentira diária que já virou um ritual. Sorrio, digo que estou bem, pinto o
rosto, tento cobrir ao menos parte das imensas olheiras que tenho, pinto os
lábios para melhor desenhar um sorriso, me modelo por fora na esperança tola de
concertar algo do lado de dentro, e o pior, me modelo por fora para os outros,
para os que me veem, quero parecer bonita... Uma mentira! Então, se é o que me
cabe, eu minto.
(...)
Sempre gostei do vento, abrir os
braços e fechar os olhos, abraça-lo, deixa-lo me guiar e o sentir me bater na
cara de mão aberta sempre me foi tão prazeroso que em dias de cinza denso até
evito sentir tal prazer... Em dias assim, dias de chumbo, isso me faria chorar.
Fecho o casaco até o fim
impedindo o vento de tocar minha pele, abaixo a cabeça, respiro fundo e de
forma lenta, só observo.
Até comer me parece
obrigatoriamente chato.
Sinto o nó na garganta apertar,
bobagem, já passou e isso é só um draminha barato digno de atuação de novela
mexicana.
Então, em meio a uma respiração
entrecortada recordo do banho quente, as gotas de água quente tocando minha
pele que se arrepia de frio a cada instante, a água não parece está quente o
suficiente, mas é mentira, o banheiro já está cheio de fumaça, o espelho
embaçado... A água está absurdamente quente, não tenho culpa se só esquenta do
lado de fora... Com a visão embaçada sinto as pernas amolecerem um pouco e me
curvo em meio a alguns soluços. Tentando respirar melhor e mais calmamente...
Frustrada cambaleio e sento no chão. A água ainda tão quente e tão absurdamente
fria que arde ao entrar em contato com a pele, os olhos fechados apertados como
se buscando em algum canto da memória um motivo para me manter ali quase que
rastejando.
Um flash: “Ganhei um par de
sandálias, acho que foi o momento de maior felicidade e orgulho. Havia sido
lembrada! Era amada! Como seria possível agradecer? Tudo o que possuía eram
dois grandes olhos brilhantes lacrimejando e olhando em sua direção, as
sandálias de plástico de uma transparência azulada e com uma flor em cima.
Depois de prova-las percebi que ficaram pequenas em meus pés... Mas nunca disse
nada, usava assim mesmo! Usava de calça para esconder o pé que passava das
sandálias porque pouco importava se servia no pé, cabia no coração preenchendo
um espaço nunca antes preenchido e se as sandálias eram pequenas demais para
serem confortáveis também não era importante, nunca fora confortável está ali e
ainda assim não tinha pra onde ir. Tudo havia sido perdoado porque as sandálias
de alguma forma representavam esforço, pensava... ‘Ao comprar as sandálias fui
lembrada, ao ser lembrada estive no lugar de alguma outra coisa, pois o
dinheiro das sandálias certamente serviria para comprar algo para a casa, mas
não, ao invés disso me foi comprado um presente! Se fui presenteada logo deduzi
ser amada, e, ao ser amada o que mais podia querer? Será o amor confortável e
grande pra caber você completo do lado de dentro, ou ele pode ser pequeno e
apertado e você ainda assim se adaptar a ele?’ nada importava, eu sorria!”
De volta à realidade me senti
sufocar, dane-se, só queria guardar ESSA memória, a única memória... A única...
Ouço alguém chamar meu nome, uma
lembrança dentro de outra lembrança. Volto, respiro normalmente, “foi só um
susto, um pensamento guardado” respondo em silêncio para me acalmar. Sorrindo
sigo, deixo as memórias se aquietarem um pouco na minha mente, não tem porque
se desgastar tanto, você sequer fez algum esforço para dizer algo, para
ligar... Eu.
(...)
Depois de relutante com a sombrinha
armada, tentando amparar toda e qualquer gota de chuva a teimosa me molha. Os
pés húmidos, as mãos congelando e trêmulas ainda segurando a sombrinha avisto:
O ônibus!
Entro e me sinto mais confortável
no caminho de casa... Casa... Casa? Não me sinto em casa em quase lugar nenhum,
não parece haver mais lógica nos lugares onde costumava me sentir amparada, não
me sinto pertencente a lugar algum e sinto pertenço a todo e qualquer lugar... Mas
conforto eu só encontro no abraço apertado de quem escolhi... Mas essa também é
outra história e percebo que meu forte é falar de coisas, histórias aleatórias,
me sinto fugindo do foco a cada nova palavra escrita e ainda assim vejo sentido
em tudo o que digo.
Olho as pessoas ao meu redor, as
pessoas simplesmente seguindo em frente, todas elas vivendo suas vidas, todas
elas... Como elas conseguem? Como EU consigo? E porq... São tantos ‘porquês’
que em muitos momentos não há sequer necessidade de concluí-los.
Meus grandes olhos rápidos roubam
cenas cotidianas das vidas dos outros e me fazem pensar em mais perguntas, mais
mentiras e mais limitações.
É tão cansativo.
Um dia, como menina curiosa que
sou me permiti enxergar além, e o mundo me pareceu tão bonito que eu não queria
mais perder esse poder, parecia que eu via o mundo através de uma lente de
aumento e ao enxergar dessa forma eu não queria mais me desfazer da minha lupa.
Era tudo tão mais próximo e tão mais palpável que em minha ilusão fiquei crente
de que bastava esticar o braço para enfim tocar o céu. Eu era o mundo tão
quando o mundo era eu, e eu era pertencente de todo lugar assim como todo lugar
me pertencia, é claro que eu chorei a me ver tão completa e ao mesmo tempo tão
vulnerável... Eu era um sopro! Eu sou!
E depois de enxergar tudo tão grande, de
sentir todos os cheiros e texturas eu só não quero mais enxergar o mundo em
diminuto.
Choro e sufoco por não querer
mais me enxergar como a menina que se contenta com a dúvida ou com a sandália
pequena machucando os pés por que é amor ou prova do mesmo. E não quero me
bastar com qualquer lembrança que seja de algo que não existe.
Cheiro do dia: Plástico. Tão
artificial quanto às respostas que possuo.
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